O Assalto

** Foi distinguido com o 1º prémio no 7º concurso literário Papel D'Arroz Editora
** Incluído na coletânea "Um Dia de Loucos" da mesma editora
Naquela tarde quente de agosto, três homens conversavam, por entre a frescura bem vinda das árvores. Faziam um interessante trio. Com roupas que já conheceram melhores dias e socas de pau, espraiavam-se na pequena clareira, como que esperando alguma coisa.
– Pois é como te digo, Xico. - Dizia o das fartas suíças, sentado num tronco de árvore, enquanto acariciava uma pistola ornamentada. - Desta vez não há que enganar! Se algum se armar em galaró, amando-lhe um chumbo entre os olhos, que há de logo ir dar com os cornos aos pés do mafarrico.
O mais novo dos três, com largas melenas encaracoladas, a escapar-se do chapéu puído, benzeu-se apressadamente.
– Ora, tem juízo, Zé. - O terceiro, tronco de barrica, barba farta e pele morena, rematou. - Aposto que nem sabes usar esse farragatcho. Estoura-se-te o bacamarte na mão e quem vai desta p’ra melhor és tu!
– Quê? - O outro ergueu-se de um salto, sacudindo a arma no ar. - Nem tu imaginas as bujardas que já mandei com esta daqui!
– Ensina-me a atirar com o bacamarte, Zé! - Pediu o mais novo.
– Isto não é um bacamarte, Tone, sua cavalgadura! - Exclamou o visado, com ar de entendido. - Isto é uma pistola! E uma pistola de fidalgo, por sinal.
– E atão onde arranjaste essa fidalguia? - Quis saber o Xico.
– Não te alembras da “visita” à casa do juiz Sarmento?
– Bô! - O outro não queria acreditar. - Pois astreveste-te a pôr as unhas na pistola do velho baboso? E não disseste nada?
– Ora pois, aqui, como a vês!
– Deixa-me atirar, Zé! - Tone insistiu.
– Quieto! Isto não é brinquedo, Tone, ainda matas alguém! Deixa-te por aí com o varapau e a faca, que é onde és mais artista!
– Pois a merda do juiz pouco lá tinha que se aproveitasse. Uns cobres descuidados e umas pratas... aposto que o fideputa tem os dobrões enterrados por lá.
- Não te podes queixar muito. – Continuou Zé. – Lembras-te do presuntinho que mamamos na taberna do Julião à custa do que trouxemos de lá?
- Atão não? E aquele tinto de estalo? – Xico concordou.
– Dispara tu, então, Zé! Deixa-me ouvir! – Tone insistia indiferente às lembranças gastronómicas.
– Deixa-o, Tone! - Riu-se Xico. - Tenho cá a ideia que esse patranhas nem sabe usar a geringonça.
– Dizes tu, ò zangão! - Zé enervou-se pela utilização da sua alcunha e ofendeu o outro com a dele. Mas começou a explicação aos dois, que entretanto se aproximaram... - Isto é só carregar a póvora e a bala e já está! Ósdepois puxa-se aqui o fecho e está pronta a...
O potente estampido produzido pela arma deixou todos sem fala enquanto o chapéu de palha do Xico voava e o seu rosto ficava coberto de fuligem.
– Ah! Excomungado dos demónios! - Gritou o Xico Zangão erguendo o varapau. - Por um cibo não me arrebentavas com os cornos, filho de um cabrão!
– Foi sem querer, desculpa! - Gritou o patranhas fugindo para trás de umas pedras próximas.
– Deixa-o! - Pediu Tone colocando-se no caminho do ofendido. - Não vês que foi sem querer?
– Se tornas a chegar-te a mim com esse estadulho dos infernos, racho-te à barduada! Seu patranhas desmiolado!
– Pronto! Desculpa, já disse, fugiu-me o fecho dos dedos. - Desculpou-se Zé.
Amuado, Xico sentou-se numa pedra a resmungar sozinho. Não era sem razão, que era conhecido por zangão; as suas fúrias repentinas e o ar de poucos amigos, punham qualquer um em respeito. A aldeia raiana de onde provinham, era fértil em rebatizar os seus habitantes e Zé, por seu lado, era o patranhas, sempre a exagerar as histórias em que se envolvia e os resultados delas, que a maior parte das vezes lhe eram desfavoráveis. Já o Tone, irmão de Xico, era o canhoto, ou o russo. Poucos gostavam das alcunhas que lhes davam, mas todos colaboravam nos batismos populares que, à falta de outra coisa, podiam servir como insulto ou provocação.
Mantendo um olho na arma e o outro a vigiar o Xico, Zé recarregou a pistola com pólvora e colocou a esfera metálica que pressionou para o fundo do cano, várias vezes, com a vareta. Em seguida, testou o fecho de pederneira, várias vezes, para se certificar que não se repetia o acidente. Tone falava baixo com o irmão que não parava de resmungar.
O relincho próximo de um cavalo, deixou os três de ouvido apurado. Breve se começaram a escutar vozes masculinas que conversavam calmamente.
– Estão aí! - Sussurrou Zé, correndo para junto dos outros.
Ato contínuo, Tone, em vários saltos, deslocou-se sobre as pedras para o maciço de árvores que os separava da estrada e pôs-se a espreitar.
– Já lá vêm! - Sussurrou.
– Quantos são? - Quis saber Xico.
– Dois na carroça e um a cavalo. O cavaleiro deve ser gente fina, belo chapéu, boas botas...
– Merda! A coisa deve ser coisa fina, mesmo. Para trazer um guarda... - Reconheceu Zé. – Hoje vamo-nos consolar outra vez na taberna… ai presuntinho…
– O badocha não te disse o que traziam? - Xico ficou desconfiado.
– Não. Disse que levavam coisa fina para o solar dos Resendes.
– Ai! Raios me partam, que caio sempre nas tuas patranhas.
– Bô! Mas que queres tu? Não encheste os bolsos com o outro mercador de Penafiel? E o peleiro de Amarante? Não vinha cheio de moedas? O badocha não se costuma enganar!
– Pouca ladradeira aí! - Sussurrou Tone. - Tão quase a chegar! Apresta-te lá prà frente deles, Zé, já que tens o bacamarte.
– Pistola, asno! - Ralhou-lhe o visado enquanto corria para emboscar a carroça.
Na estrada, se se pode chamar assim ao caminho de terra batida que ziguezagueava por entre as árvores, os dois carroceiros conversavam despreocupadamente. O cavaleiro que os seguia parecia dormitar em cima da sela. A caixa da carroça vinha ocupada com seis arcas de madeira, cobertas com uma enorme sarapilheira suja.
Com a cara tapada por um colorido lenço e a pistola apontada aos viajantes, o patranhas caminhou calmamente da berma para o meio da estrada, até que o vissem.
– Alto lá! - Ordenou.
– Que é isto? - Indignou-se o condutor da carroça.
– Isto é um negócio a não perder, amigos forasteiros, - Brincou Zé. - Vocês deixam a carroça e os cavalos e eu deixo-vos ir embora vivos.
O cavaleiro preparou-se para esporear o cavalo mas, ao nível do rosto, surgiu-lhe a ponta do varapau de Xico que avisou:
– Quieto aí ò echelência! Não queremos amassar esse bonito chapéu, pois não?