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Criminoso


Imagem: Sergio Fabara Muñoz - Umbrella - Flickr

A chuva caía copiosa sobre os telhados correndo vertiginosamente para as caleiras rotas e vãos de telhado lançando-se generosamente sobre os transeuntes que, por azar, passavam sob elas.

De vez em quando, um relâmpago abrilhantava o céu escuro coberto de nuvens ameaçadoras.

Até o vento fraco parecia aliado daquele tempo pouco convidativo e lembrando que era ele o portador daquelas nuvens prenhes de água que inundavam as ruas imundas de lixo.

Miguel caminhava apressadamente sem guarda-chuva, através das poças que insistiam em chapinar acima do cano curto das botas.

Até a camisa, por baixo do casaco ensopado, começava já a ressentir-se e o tecido húmido arrepiava a pele.

As coisas não lhe corriam nada bem desde que saíra da cadeia. Há algum tempo que não lhe aparecia um “trabalhinho” realmente bom, e seguro, onde pudesse retemperar as suas depauperadas finanças.

A última carteira que “trabalhara” no autocarro rendera-lhe um livro de senhas de transportes, um bilhete de identidade imprestável de tão mal tratado, uma fotografia de uma mulher gorda e dois filhos ranhosos e cinco euros e cinquenta cêntimos… Realmente…

As coisas não estavam mesmo nada bem, o carro não tinha gasolina, o irmão recusava-se a emprestar-lhe mais dinheiro e até a gaja que dizia que esperaria por ele até que saísse da prisão se tinha “baldado” sem que nenhum dos amigos soubesse para onde.

Vagueava então pelas ruas à procura de algo descuidado... uma carteira “à mão de semear”, um carro aberto. Até os trocos que um incauto cliente do café deixara para pagar a sua despesa mudaram-se por encanto para a sua algibeira.

A água ensopava o cabelo curto e escorria livremente pelo rosto, pingando do queixo e do bigode loiro e fino que mantinha cuidado.

Mesmo na cadeia, nunca deixara de cuidar do seu aspeto, não deixava crescer o cabelo nem a barba e aparava cuidadosamente o bigode de que se orgulhava. Um dos presos mais velhos chamava-lhe Errol Flynn, parece que era um galã do cinema do tempo do “preto e branco”. A alcunha pegou e começaram a chamar-lhe Flynn.

Aproximava-se da esquina onde costuma estar aquela “garina” que andava a “micar” há alguns dias, sempre no mesmo sítio… ele olhava-a insistentemente ao passar e ela devolvia-lhe o olhar, descarada. Parecia ter “pastel”...

Reduziu o passo e fingiu uma descontração que não tinha.

Ali estava ela. Embrulhada numa capa amarela, guarda-chuva aos quadrados, com o cabelo negro, rebelde enfeitando o rosto moreno. E os olhos… os olhos vivos e atentos a todos os movimentos à sua volta, brilhantes e cheios de vida.

Era alta para mulher, na casa dos trinta. Magra mas insinuante, elegante, mesmo vistosa.

A chuva parecia não a incomodar minimamente e ali estava na mesma esquina, sem que ele soubesse à espera de quê…

Ao aproximar-se olhou-a nos olhos e ela devolveu-lhe um olhar profundo e incendiado tão ausente quanto atento… Sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés quando ela sorriu.

O seu sorriso, era como se o sol rompesse da terra expulsando as nuvens e a chuva. Por instantes, aquele rosto iluminou-se enquanto aquela dádiva de Deus surgia e desaparecia com a mesma rapidez... Os olhos desinteressaram-se dele e encararam-no com frieza.

Tentou falar, mas o que lhe saiu foi um grasnar rouco, fruto do nervosismo.

Tossicou e tentou de novo:

  • Olá.

Com aquele olhar penetrante, ela, pouco mais baixa que ele, perscrutou-o de alto abaixo. O guarda-chuva continuou a abriga-la apenas a ela. Um sorriso irónico acompanhou a resposta:

  • Olá.

  • Já há vários dias que te encontro aqui… - Tentou.

O sorriso desvaneceu-se dando origem a uma expressão séria: - E?

  • E nada – desculpou-se – simplesmente me interrogo que faz uma miúda como tu, aqui sozinha, à espera não sei de quê.

  • Deves ter muito a ver com isso. – O olhar endureceu – És policia?

  • Eu? – A gargalhada saiu-lhe com gosto – Se há coisa que não sou é policia.

O desinteresse regressou e os olhos retornaram para o vazio do outro lado da rua.

  • Então”vaza”. “Desampara-me a loja”.”Dá de frosques.”

  • Eh, calma. – Pediu – Só queria meter um pouco de conversa neste dia horrível e gelado. Parecias-me uma tipa porreira para conversar um pouco.

Aqueles olhos estonteantes olharam-no no fundo da alma e gelaram-no dos pés à cabeça: - Não estás confundido, ó “pázinho”? Achas que estou aqui no ataque, é?

  • Poça… - Lamentou-se – Desculpa lá se é isso que te faço pensar, mas aí, a minha pergunta seria “Quanto é?”, não te parece?

Silêncio. O olhar pareceu aquecer um pouco e a chuva deu a impressão de amainar. O guarda-chuva deslocou-se para proteger um pouco a cabeça irremediavelmente molhada de Miguel: - Que queres então?

  • Sei lá, conversar, já não falo com ninguém há tanto tempo, tu pareces uma miúda simpática… Sinto-me sozinho percebes? E tenho-te visto aí tão só estes dias…

Uma língua voluptuosa humedeceu uns lábios carnudos entreabertos quentes e sensuais mas não respondeu.

  • Se não queres, amigos à mesma… - Conformou-se.

Os lábios formaram um sorriso acompanhado de um olhar semicerrado, desconfiado.

  • Que queres falar então? Do tempo? – E afastou o guarda-chuva olhando para cima para que a água lhe caísse livremente no rosto logo tornando à posição inicial. – Está molhado.

Ele olhou para o lado, constrangido, dando a oportunidade dela o apreciar calmamente.

  • Vamos tomar um café? – Recuperou ele repentinamente.

Um encolher de ombros desinteressado acompanhou a resposta: - Pode ser. Onde?

  • Ali na esquina do outro lado. Vem.

Ele esperou de lado, facultando-lhe a passagem e indicando a direção com o braço direito. Ela acedeu, caminhando majestosamente à sua frente, enquanto atravessava a rua.

Já no estabelecimento, sentados, fez sinal ao empregado que lhe trouxesse dois expresso. A mão esquerda contava as moedas que ainda conservava no bolso: - Espero que não queira mais nada. – Suspirou de si para si.

Todo o salão cheirava a molhado e o chão estava marcado por dezenas de sapatos de todos os tamanhos e feitios que calcorrearam a área em busca de uma bebida quente e reconfortante.

Os vidros, através dos quais se viam pessoas apressadas, escorriam as gotas sujas duma chuva insistente e gordurosa.

  • Estás todo encharcado… - Observou a jovem em jeito de conversa aparentando um pouco de simpatia.

  • É – confirmou – eu e os guarda-chuvas nunca nos demos muito bem. Acho que é qualquer antipatia de nascença.

Um olhar curioso devorou-o fundo nos olhos logo interro